Conferência proferida por Hans Küng, no dia 22-10-2007, na Unisinos.
Por Cleusa Andreatta doutora em teologia, professora da Unisinos e
coordenadora do programa Teologia Pública do Instituto Humanitas Unisinos.

Introdução: Religião e Ethos
É possível ser moral, mesmo sem fé? Sim, é
possível. Também ateus, agnósticos, céticos podem ter um ethos que, no entanto, não se
fundamenta numa fé em Deus, porém numa confiança básica na realidade. É algo
como uma moral fundamental.
É possível ser moral, mesmo sem fé? Sim, é
possível. Também ateus, agnósticos, céticos podem ter um ethos que, no entanto, não se
fundamenta numa fé em Deus, porém numa confiança básica na realidade. É algo
como uma moral fundamental.
Então, por que ter ainda uma religião? Porque só a
religião oferece resposta convincente sobre o definitivo de onde e para onde de
minha existência; responde ao porquê e o para quê da minha responsabilidade;
fornece uma comunidade espiritual, criando um ambiente de confiança, fé,
certeza, força pessoal, refúgio e esperança; responde à saudade do “totalmente
Outro”, fundamentando um protesto e resistência contra situações injustas.
Uma religião autêntica confere ampla liberdade,
porque se relaciona com o uno Absoluto, com Deus, e distingue-se essencialmente
de toda pseudo-religião que absolutiza algo relativo, como foi anteriormente a
“deusa razão” atéia ou também o “deus progresso” com todos os seus “deuses
subalternos” no panteão da modernidade: ciência, tecnologia e indústria. Todos
eles são amplamente desmitizados e des-ideologizados na pós-modernidade e não
deveriam ser substituídos por um novo ídolo, como o “mercado mundial”. Uma
religião autêntica tem na pós-modernidade uma nova .
A partir da religião, com base nas maiores figuras
da humanidade, pode tornar-se concretamente nítido o que significa uma conduta
ética num caso bem prático. A parábola do bom samaritano diz mais do que uma
sentença doutrinal sobre a conduta humana. E a figura de Jesus Cristo diz
infinitamente mais do que qualquer sistema ético.
São estes hoje os três grandes termos programáticos
de uma espiritualidade cristã: paz mundial, religiões universais, ethos mundial.
1. Sobre a questão da paz
mundial
O mundo atual: atualmente, as Nações Unidas estão
sobrecarregadas com suas missões de conservação da paz, pois contam com uns 200
membros (comparadas com 51 no ano de 1945) e este número tende a crescer devido
à aspiração de sempre menores unidades étnicas e religiosas quererem conquistar
o status de um “Estado soberano”. As unidades se tornam cada vez menores, a
perspectiva cada vez mais estreita, a pressão por delimitação sempre mais
fanática. Os movimentos migratórios de amplitude mundial e a inimizada para com
estranhos nos confrontam com novos problemas, exigem mudarmos nossa mentalidade
e chegarmos a melhores regras de convivência neste único mundo e nesta única
humanidade. Mas como?
Pode parecer temerário falar de paz mundial,
religião mundial e ethos mundial frente às guerras e tensões religiosas na
história recente em vários países. Mas a exigência de uma paz mundial através
das religiões mundiais provém de amargas experiências do passado e do presente,
nas quais as religiões, com freqüência, desempenharam e desempenham um papel
fatal.
Não se trata de uma religião unitária e sim de uma
paz entre as religiões em que, de fato, todos os líderes das grandes religiões
falem e ajam em favor da paz entre as confissões, as religiões e as nações!
Trata-se de “um novo paradigma de relações globais”, como esbocei em livros
como “Projeto de Ética Mundial” ou “Uma ética
global para a política e a economia mundiais”.
O novo paradigma afirma basicamente uma política de
compreensão, aproximação e reconciliação regional. Isso exige cooperação
recíproca, compromisso e integração. Esta nova constelação política global
pressupõe uma mudança de mentalidade que ultrapassa a política do dia-a-dia.
Faz-se necessário um novo modo de pensar; a diversidade nacional, étnica e
religiosa, em vez ameaça, pode ser entendida como possível enriquecimento; o
novo paradigma não necessita de nenhum inimigo e sim de parceiros. Isto porque
se comprovou que o bem-estar nacional é incentivado duradouramente unicamente
pela paz e pela cooperação e convivência. E porque os diversos interesses são
satisfeitos na reciprocidade e convivência, é possível uma política que é um
jogo de somas positivas, no qual todos ganham.
Neste novo paradigma, a política permanece como a
“arte do possível”, que pressupõe um consenso social referente a determinados
valores, direitos e deveres básicos. Além de uma nova política e uma nova
diplomacia, isto exige conversão dos corações, real aceitação recíproca, um
novo Ethos.
Para nós, cristãos, a pergunta decisiva é: O que o
próprio Jesus exigiria, se ele voltasse? Eu creio que ele exigiria de nós uma
convivência solidária com as outras religiões, que renuncia às guerras
religiosas, perseguição e inquisição, substitui o egoísmo coletivo pela
solidariedade do amor, praticando tolerância religiosa, pratica o perdão e ousa
um recomeço.
2. Sobre a questão das religiões
mundiais
Durante séculos as religiões viviam num
“isolamento” recíproco, mas a situação global se modificou decisivamente.
Existe hoje um entrelaçamento mundial político, econômico e financeiro tão
forte, que economistas falam de uma sociedade global e sociólogos de uma
civilização global: uma sociedade e civilização globais como campo de interação
interconectado, no qual estamos todos direta ou indiretamente envolvidos.
No entanto, esta emergente sociedade global e
civilização tecnológica mundial de nenhum modo expressa também uma cultura
global unitária ou mesmo uma religião global. A sociedade mundial e a
civilização global incluem uma multiplicidade de culturas e uma multiplicidade
de religiões, confissões e denominações, de seitas, grupos e movimentos
religiosos. Esta multiplicidade é confusa. E, contudo, há elementos
comuns nas religiões. Todas as religiões são mensagens salvíficas que respondem
de maneira semelhante a questões básicas do ser humano sobre amor e sofrimento,
culpa e redenção, vida e morte. E todas também oferecem caminhos de salvação
semelhantes: caminhos de saída da necessidade, do sofrimento e da culpa da
existência; orientação para uma ação significativa e conscientemente
responsável nesta.
Cada religião, como fenômeno humano, é ambivalente.
Entre outras coisas, a religião pode motivar, incentivar e prolongar guerras,
mas ela também pode impedir e encurtar guerras. É preciso considerar hoje a
dimensão social, moral e religiosa das crises político-mundiais.
As religiões do mundo estão profundamente
conflitadas entre si. Entretanto, em vez de estarem em confronto e luta entre
si, sua primeira tarefa, deveria ser a criação recíproca da paz, clareando
mal-entendidos, superando lembranças traumáticas, elaborando os conflitos de
culpa, desfazendo o ódio concentrando-se nos aspectos comuns.
Todavia, será que os adeptos das diversas religiões
sabem algo a respeito do que – apesar de suas grandes diferenças “dogmáticas” –
é comum precisamente no Ethos? Absolutamente não. Por isso, a necessidade de um Ethos mundial.
3. Sobre a necessidade de um
Ethos mundial
Um primeiro aspecto: o Projeto
de Ética Global exige
precisamente a aliança de crentes e não-crentes por um novo ethos básico comum.
Um segundo aspecto: em vista de um mínimo de ethos, de valores comuns, de
parâmetros vinculantes e convicções pessoais básicas, as religiões têm
certamente uma função e responsabilidade específica. Elas podem, onde querem,
fazer valer máximas fundamentais de humanidade elementar. Sobretudo, a regra da
humanidade: “Cada pessoa deve ser tratada humanamente!” E a seguir a Regra
áurea: “O que não queres que se faça a ti, também não o inflijas a nenhum
outro”.
Isto deve ser feito conscientemente: pois todas as
grandes religiões exigem determinados “padrões inegociáveis”: normas éticas
básicas e máximas de orientação da ação que são fundadas a partir de algo
incondicionado, absoluto; por isso, elas também devem valer incondicionadamente
para centenas de milhões de pessoas – mesmo que não sejam cumpridas no caso
concreto.
Aqui Declaração sobre o Ethos mundial, que o Parlamento
das Religiões
cósmicas publicou
aos quatro de setembro de 1993, em Chicago, ganha concretude. Todas as
religiões podem e devem empenhar-se ativamente e aceitar obrigações pessoais.
Trata-se aí do seguinte:
- A obrigação por uma cultura da não-violência e do
respeito por toda vida: “Não matar – também não torturar, maltratar, ferir –
ou, positivamente: “Respeite a vida!”
- A obrigação de uma cultura da solidariedade e uma
justa ordem econômica: “Não furtar –também não pilhar, chantagear, corromper”,
ou positivamente: “Age honesta e lealmente!”
- A obrigação por uma cultura da tolerância e uma
vida em autenticidade: “Não mentir – também não enganar, falsificar,
manipular”, ou positivamente: Fala e age autenticamente!”
- Enfim, a obrigação por uma cultura de iguais
direitos e a parceria do homem e da mulher: “Não fazer mau uso da sexualidade –
também não abusar, diminuir, aviltar o parceiro” – ou positivamente:
“Respeitai-vos e amai-vos mutuamente!”
Diante de todas estas reflexões e atividades por um
ethos mundial,
devemos nos perguntar, como cristãos, qual é o nosso ethos cristão específico, o qual
representa para os cristãos singular aprofundamento, concretização e
radicalização do Ethos mundial: Jesus Cristo como “nossa Luz”: o que nós,
iluminados por esta luz, devemos dizer sobre o sentido da vida e da morte,
sobre o suportar da dor e o perdão da culpa, sobre uma desprendida doação e a
necessidade da renúncia, sobre uma abrangente compaixão e uma duradoura
alegria. Tal ethos cristão pode não só ser unificado com um Ethos mundial, porém poderá
aprofundar, especificar e concretizar o Ethos mundial para os cristãos.
Conclusão
Todas as experiências históricas demonstram que um Ethos mundial poderá impor-se. A Terra
não pode ser modificada sem que seja alcançada a médio prazo uma transformação
da consciência e uma re-orientação do pensamento e da ação de cada um, como
também do público. E para tal transformação precisamente as religiões são
responsáveis de modo todo particular.
A nova ordem mundial só será uma ordem melhor,
quando ela se tornar um mundo social e plural, compartilhado e promotor da paz,
amigo da natureza e ecumênico. Por isso, muitas pessoas se empenham já agora,
com base em suas convicções religiosas ou humanas, por um Ethos mundial comum e convocam todas
as pessoas de boa vontade a contribuírem para uma transformação da consciência
em questões éticas.
Tudo o que eu disse até agora, eu posso resumi-lo
conclusivamente em quatro breves sentenças:
·
Nenhuma
paz entre as nações sem paz entre as religiões.
·
Nenhuma
paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões.
·
Nenhum
diálogo entre as religiões sem padrões éticos globais.
·
Nenhuma
sobrevida do nosso Globo na paz e justiça sem um novo paradigma de relações
internacionais na base de padrões éticos globais.
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